O veículo fabricado por mais tempo no Brasil estaria completando 60 anos. Sua história se encerrou no final de 2013, por causa da obrigação de todo o carro fabricado no país ser equipado com airbags frontais e freios ABS a partir do ano seguinte, o que era inviável na Kombi.

Sindicalistas e o ex-ministro da fazenda do desgoverno do PT tentaram adiar a morte do utilitário, isentando a Kombi desta obrigação. Mas o bom senso falou mais alto.

Na Alemanha, a Kombi nasceu em outubro de 1949, sugerida dois anos antes por Ben Pon, um empresário holandês, dono de concessionária que se tornou o primeiro representante da Volkswagen em seu país natal e fora do país de origem da marca. Pon rabiscou em seu caderno de anotações o esboço de um automóvel revolucionário que pudesse transportar cargas de forma eficaz. A ideia veio do Plattenwagen, uma espécie de carrinho motorizado de transporte de peças dentro da fábrica da Volkswagen, que tinha chassi e motor de Fusca, mas a cabine com o volante ficava na parte de trás.





Construído sobre um novo monobloco, mas compartilhando suspensão e motor do Fusca (conhecido na época como Sedan ou Tipo 1), o novo utilitário deveria suportar cerca de 800 kg com um motor de cilindros contrapostos (boxer) de apenas 1.2 litro de cilindrada e 25 cavalos. Para distribuir o peso, Pon recomendou que a carga seja transportada no meio, o motor atrás e os dois passageiros fossem na frente. 

O primeiro furgão monovolume do mundo nasceu com dois nomes oficiais: Typ (tipo) 2, referente ao projeto e Transporter, o nome comercial. O nome Kombi usado por nós é a abreviação de kombinationsfahrzeug, ou seja, combinação de espaço para o transporte de passageiros e carga. Resumindo, veículo multiuso, antecipando o conceito do Doblò, do Kangoo e do Berlingo, que fizeram sucesso inicialmente no Brasil, mas esfriaram nos anos seguintes.


O Plattzenwagen, carrinho de transporte interno de fábrica que inspirou Ben Pon a criar a Kombi

Em 1950, o utilitário começou a ser vendido no Brasil, importado pela Brasmotor, a mesma que traria o Fusca, também representante da Chrysler e antiga dona dos eletrodomésticos Brastemp. Logo passou a ser montadp na sede da empresa, em São Paulo. 

Sua carroceria parecia um pão de fôrma inteiro. Os pára-brisas eram divididos, a frente vertical, por causa do motor traseiro (a entrada do ar que o refrigerava ficava na lateral), e ela tinha um par de faróis redondos. A sua personalidade era dada pelo vinco em V e o grande emblema VW.



Há sessenta anos, já chamado de Kombi, inaugurou a fábrica de São Bernardo do Campo, no ABC paulista. A Kombi começou a ser produzida antes mesmo do Fusca, que já era importado, mas só seria produzido dois anos depois. Como o sedan, a Kombi começou com 50% de nacionalização. 

Foto: Gustavo do Carmo

O primeiro utilitário fabricado no Brasil também tinha o seu defeito: o motor 1200 (já com 30 cv de potência) refrigerado a ar era barulhento. Mas a sua capacidade de transportar até 9 passageiros, os seus 4,8 m³ de espaço útil e a facilidade de manobrar fizeram da Kombi um sucesso. A capacidade menor das concorrentes Willys Rural e Toyota Bandeirante também colaborou para que a van da Volkswagen dominasse o mercado. 

Em 1961, 95% dos componentes já eram feitos aqui. Chegavam o câmbio sincronizado e a versão de seis portas laterais. Disponível inicialmente nas versões furgão (fechado) e passageiros (com oito janelas laterais, quatro de cada lado, sem contar as da coluna traseira e as dos passageiros da frente), ganhou em 1967 a picape. A partir daquele ano, a Kombi brasileira começou a parar no tempo, embora tivesse recebido um novo motor 1500 com 44 cavalos líquidos de potência.





Na Europa, a Kombi evoluía para uma versão que levaria trinta anos para chegar aqui: teto alto, janelas laterais maiores e porta corrediça. Era chamada de Clipper. Depois foi mudando de carroceria até se transformar na Caravalle vendida aqui como importada em 1999, junto com a Eurovan, de grade mais antiga. Lançadas bem na época da desvalorização do Real frente ao dólar, se tornaram caras demais e não pegaram no Brasil.


A atual T6

A primeira das duas únicas mudanças radicais da Kombi brasileira só aconteceu em 1975 e, ainda assim, pela metade. O vinco em V desapareceu, o pára-brisa passou a ser inteiriço e alinhou-se ao teto. As redondinhas luzes de direção deixaram a companhia dos faróis e foram parar próximas ao pára-brisa, retangulares, com lente laranja e integrados a uma entrada de ar. Os para-choques perderam os apliques verticais e ficaram mais retos. As janelas do motorista e do carona deixaram de ser corrediças para terem abertura convencional, por manivela. Atrás, as lanternas deixaram de ser ovais e aumentaram de tamanho. Por dentro, um novo painel que durou até 2005. Com a reestilização, a cilindrada do motor se tornou 1600 e a sua potência subiu para 52 cavalos.


Pronto. A partir daí a Kombi foi ganhando apenas alterações nas calotas, na moldura dos faróis e no acabamento interno. Chegou a oferecer picape de cabine dupla e estendida e até motor a diesel (1600, com 50 cavalos), em 1984, identificado por um indiscreto radiador na frente. Transformou-se em motorhome, ambulância e conquistou de vez os feirantes. Já havia sido camburão de polícia, mas foi trocada pela Chevrolet Veraneio.

Kombi Diesel



Com a reabertura das importações no início dos anos noventa, desembarcaram as coreanas Towner, Topic e Besta e a japonesa L300, da Mitsubishi. Conquistaram compradores, mas não tomaram o lugar da Kombi. A primeira era muito pequena e as três últimas muito grandes. O mesmo valeu para Ducato, Partner, Boxer, Sprinter, Trafic e Master. 

Por isso, a Volkswagen deu apenas uma refrescada na Kombi, sem renovar totalmente o utilitário, mas, finalmente, trazendo as janelas maiores, a porta corrediça e o teto elevado em 11 cm. Eliminou também a divisória entre a cabine e a área de passageiros, fazendo dela uma van "moderna". Voltou a criar uma versão luxuosa, com bancos de veludo, que não existia desde os anos 70, batizando-a de Carat. Comportava apenas sete passageiros contra nove da versão básica.










Em 1998, o motor boxer 1600 ganhou injeção eletrônica. Em 2004, virou bicombustível. E dois anos depois, por causa do aumento da rigidez das leis antipoluentes nacionais, o motor a ar, usado no primeiro Fusca alemão, há quase setenta anos, e há mais de cinquenta no Brasil foi finalmente aposentado. Em seu lugar entrou o 1.4 Total Flex, com refrigeração a água, bicombustível (potência variando entre 78 e 80 cavalos), mas ainda montado na traseira. Visualmente, o carro voltou a usar a grade acoplada do antigo modelo a diesel e, por dentro, um novo quadro de instrumentos, transplantado do Fox e do Gol. Mas criaram uma série especial, a Prata, como despedida para o motor a ar. Em 2007 foi vendida  outra série, desta vez limitada a 50 unidades, em comemoração ao cinquentenário da peua, com pintura saia e blusa: vermelha na carroceria e branca no teto.







Com a saída de cena das vans coreanas e o preço elevado das atuais rivais, a Kombi ganhou sustentação graças aos donos de lotação. Mesmo arcaica, a Kombi brasileira já foi exportada para a Argentina, México e Nigéria. Atualmente, costuma ser comprada por empresas de personalização no exterior que buscam atender aos fãs saudosos da antiga Microbus.




Já se falou que a Kombi ganharia uma nova geração baseada na plataforma AB9 do Gol. Mas não passou de especulação. O conceito Bulli, apresentado no Salão de Genebra de 2011, que criava uma versão modernizada, como fizeram com o Fusca (New Beetle), não vingou. Na exposição de eletrônicos para o consumidor de 2016 (Consumer Eletronics Show - CES), em Las Vegas (EUA), foi apresentado outro conceito, o Budd-e, agora com motor elétrico. Em Detroit 2017 foi apresentada a iDBuzz, outro conceito com motor elétrico, conectado à internet e com formas mais parecidas com a da Kombi, que deve ser mesmo a sucessora do utilitário, se não suspenderem novamente o projeto.



Volkswagen Bulli 2011




Volkswagen Budd-e

Volkswagen ID-Buzz

Em 2009 o Contran deu cinco anos de prazo para que todos os carros fabricados no país estejam equipados com airbags frontais e freios ABS. Indiretamente, seu fim estava decretado. A Volkswagen ainda tentou adaptar os modernos itens de segurança no projeto de 55 anos. O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega tentaram fazer pressão no órgão para isentar a Kombi e outros modelos como o Fiat Mille (velho Uno) da obrigatoriedade dos itens de segurança e prolongar a sua vida em mais dois anos, com a justificativa de evitar demissões com a desativação das linhas de montagem. Mas diante da reação negativa da imprensa automotiva, o Contran foi irredutível e a Kombi teve que sair mesmo de produção.



Para preparar a despedida, a Volkswagen já tinha lançado, em agosto de 2013, a série especial Last Edition, limitada, inicialmente a 600 unidades. Vinha exclusivamente na cor "azul calcinha" com teto branco (estilo saia e blusa), cor presente também nas rodas, calotas e banda dos pneus, além dos para-choques. Na lateral e na traseira um selo 56 anos, que marcava a idade que ela tinha ao deixar de ser fabricada no Brasil.


O interior era luxuoso com cortinas, nome da Kombi bordado nas braçadeiras, bancos revestidos de vinil e uma placa de aço escovado com o número da unidade na disposição 001/600. O motor era o 1.4 EA111 Flex de 78/80 cv. A série especial custava R$ 85 mil na época, que já era caro. Mesmo assim, a procura foi grande e a Volks lançou mais 600 unidades, o que motivou algumas ações na justiça de clientes ludibriados com um lote caro que foi vendido como raro, mas que ganhou mais 600 exemplares.






Enquanto Last Edition era vendida, a Volkswagen fazia ações de marketing, dando presentes alusivos à Kombi, como se fosse o testamento de uma "velha senhora" a algumas pessoas selecionadas pela agência de publicidade, como uma moça que nasceu dentro do utilitário, comerciantes que abriram negócio usando o carro, um torcedor que viajou para três Copas do Mundo de Kombi e o filho do criador Ben Pon.







A Kombi enfim deixou de ser produzida em 19 dezembro de 2013, véspera do recesso de fim de ano. A 1.200ª unidade das 1.200 esticadas da Last Edition foi enviada para o museu mundial da Volkswagen em Hannover. Afinal, foi a última Kombi produzida no mundo.



Em termos de segurança a Kombi não deixou saudades. Nas lembranças de vida de seus muitos compradores, com certeza, sim. Mas ela merecia, muito bem, ser modernizada no Brasil, com direito a airbags e freios ABS, responsáveis por sua morte natural.  

TEXTO: GUSTAVO DO CARMO | FOTOS: DIVULGAÇÃO E GUSTAVO DO CARMO
DADOS DE TESTE KOMBI LAST EDITION: REVISTA QUATRO RODAS